1899

1899 | Um breve estudo da natureza humana

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Dos mesmos criadores de DARK, 1899 traz um pequeno estudo sobre múltiplos assuntos como filosofia, religião e ciência em sua breve passagem.

Que Baran bo Odar e Jantje Friese são geniais no que se propõem todos nós sabemos. DARK foi um sucesso absoluto e entrou pro hall das melhores séries já feitas. Talvez por isso, expectativas foram criadas sobre o que seria 1899. Esperamos ansiosamente por esse novo trabalho da dupla. 

Com a série no ar, alguns fãs não se agradaram do que viram, outros já amaram. Alguns dormiram no meio do caminho e desistiram. Ok, não vamos julgar ninguém por isso. 1899 precisa de uma certa força de vontade no início, não vou negar. Mas, o ouro está do meio da temporada pro fim. Uma pena pra quem ficou pelo caminho…

Ainda que tenha sido bem recebida em sua maioria pelo público, a Netflix resolveu cancelar 1899. Uma pena. Tenho certeza que Baran bo Odar e Jantje Friese iriam novamente nos surpreender e entregar mais uma série impecável. O pouco que tivemos já foi brilhante. Poucos conseguem misturar assuntos tão complexos com tanta maestria e sutileza. Vamos falar um pouco sobre eles.

1899 – ciência, religião e filosofia

A série se passa, em sua maior parte, em um navio em alto mar. À bordo, pessoas de diversos países em busca de uma nova vida. Tudo começa a dar errado quando um outro navio, que estava desaparecido, é encontrado sem ninguém nele, com exceção de uma criança. Então, o capitão Eyk Larsen (Andreas Pietschmann) e Maura (Emily Beecham) começam a investigar e se emaranhar nos fios que os enlaçam nesse mistério. 

Maura (Emily Beecham) e Eyk (Andreas Pietschmann) em 1899

1899 pode ser classificada como uma série de suspense, mistério, romance, ficção científica com uns toques até de terror. Mas, o que me chamou a atenção foi a introdução do que viria a ser um pequeno estudo da natureza humana. Conforme os episódios vão passando e a história vai se mostrando, podemos analisar como certos comportamentos se dão e como a mente humana pode ser facilmente enganada e manipulada.

Em algumas cenas, é possível ver uma certa falta de qualidade de imagem. Como as cenas do mar revolto, das pessoas se jogando e do menino sendo jogado. Fica a sensação, agora que sabemos se tratar de uma simulação, de que a qualidade duvidosa foi intencional para mostrar para a gente (e para os personagens, ainda que indiretamente) que o que estamos vendo não é nada além de computação. Somos tão manipulados quanto os personagens. Brilhante! 

Na trama, vimos como o mito da caverna de Platão pode ser vivido no cotidiano. Os próprios autores de 1899 citam a alegoria em um episódio. Se analisarmos, é perceptível a intenção de mostrar como o ser humano se baseia no que ele pode ver, no que ele já viveu, no que ele tem como realidade de vida. 

Na alegoria, como devem saber, o filósofo conta a história de um grupo de pessoas, presas em uma caverna, de costas para o exterior. Na parede da caverna, são projetadas algumas sombras e essas pessoas só veem aquilo e entendem como sendo real, como uma única verdade. Um dia, um homem consegue escapar e, ao sair da caverna, descobre tudo. Mas, ao tentar convencer seus amigos, é taxado de mentiroso. Os outros se recusam a enxergar além das sombras da parede da caverna.

O mito da caverna de Platão, alegoria citada em um dos episódios de 1899

Podemos facilmente estender esse paralelo à nossa vida, não é mesmo? Como nos enganamos absurdamente fácil pelo que vemos (ou achamos que sim). Então, o que é real e o que é ilusão? Como separar e ter plena consciência de que o que você está vendo, sentindo e alcançando é o verdadeiro estado das coisas, é o verdadeiro semblante das emoções e da vida? 

É difícil para nós, humanos, conceber de forma precisa sobre o nosso redor, sobre o que é real ou o que apenas enxergamos como a realidade. René Magritte, por exemplo, em sua obra “Ceci n’est pas une pipe” mostra que o que vemos nem sempre é, de fato, o real. É possível que seja uma adaptação ou recriação, como no quadro. É possível que seja apenas a nossa opinião ou expectativa sobre o que queremos ver, sentir e viver. São inúmeras possibilidades, não é?

Ceci n’est pas une pipe de René Magritte

Em 1899, podemos observar esse tipo de situação quando os personagens descobrem (ou começam a descobrir) que estão numa espécie de simulação, de um jogo onde eles são as marionetes de um possível estudo científico. Com isso, suas ações e comportamentos são analisados constantemente. Em um grupo, podemos ver a religião trabalhando como um escudo para que as pessoas não vejam o real. São capazes de jogar uma criança ao mar por achar que se trata de um ser maligno. 

Outro grupo já se apoia na negação, no descaso, no não se importar ou fingir que não está acontecendo. Enquanto outros, buscam de forma consciente uma resposta científica para tudo que está acontecendo. São pessoas de diferentes países, falando diversas línguas como o francês, português, japonês, alemão, inglês, etc numa espécie de torre de babel marítima. São diversas vivências e experiências de vida que farão com que cada um ali se comporte de forma diferente ou até mesmo igual ao seu semelhante.

Elenco de 1899 ao lado dos criadores Baran bo Odar e Jantje Friese

Basta uma fagulha para acender de forma positiva ou negativa todo o resto. Enquanto uma mulher, com sua crença cristã, acendeu a fagulha do extremismo religioso, um subordinado com intenção de poder, põe a tripulação contra seu capitão e toma o navio. Em situações de estresse, medo, angústia e desespero, o ser humano é capaz das mais absurdas ou maravilhosas atitudes. Novamente, a reação de cada um depende do momento, do fator biológico, da sua experiência de vida e, principalmente, do que ela enxerga como real naquele instante. Como citam na série: “Toda calamidade traz oportunidades”. 

A trama de 1899 nos leva a lugares distantes do pensamento, ainda que sejam poucos cenários usados. Há um trabalho muito cuidadoso em representar cada personagem, suas histórias, os motivos pelos quais estavam desesperados para fugir de seu país, rumo a uma nova vida. A gente se prende no conjunto, no contexto e cria uma expectativa de ver no que aquilo tudo, toda aquela bagunça organizada vai dar. Como se estivéssemos, juntamente com os personagens, em uma espécie de labirinto, dando voltas e voltas, mas prestes a encontrar a saída. E encontramos.

No último episódio, ao acordar da tal simulação, Maura descobre que está a bordo de uma nave no espaço e em uma data distante no futuro. Descobrimos que tudo era muito mais do que apenas um jogo psicológico de um médico alucinado por mentes humanas. Novas perguntas começaram então a surgir. Quem eram os tripulantes dessa nave? O que era realmente essa nave? Qual a sua finalidade? O irmão de Maura seria mesmo o responsável por tudo? Maura estava enlouquecendo com a doença/morte do filho? Seria a nave mais uma simulação? Maura conseguiria convencer os outros de que nada daquilo é real, como o homem que conseguiu fugir da caverna de Platão?

Tantas e tantas perguntas que ficaremos sem respostas, infelizmente. A Netflix foi a Netflix mais uma vez e nos tirou 1899. É ruim ficar sem a conclusão, obviamente. Mas, o pouco que a dupla nos apresentou foi um trabalho primoroso e fica aqui o nosso agradecimento por terem tentado fazer algo diferente do que é consumido ferozmente nos dias de hoje. Valeu a reflexão! 

“Que o seu café te acorde antes da realidade”.


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