Memórias de um Corpo Ardente, filme espanhol exibido no Festival Filmes Incríveis, acerta ao priorizar boa história.
Em meu texto sobre A Flor do Buriti, falei sobre como o gênero “semidocumentário” não costuma me agradar. Trata-se de uma opinião e o trabalho de um crítico envolve abraçar até os gêneros distantes de seus gostos. Isso nos traz a “Memórias de um Corpo Ardente”, um semidocumentário o qual mesmo abraçando elementos distantes das minhas preferências, distingue-se por sua condução.
Em termos de história, é tudo muito simples: uma atriz (e outras em cenas de “flashback”) encena as memórias e desejos internalizados por mulheres acima dos sessenta anos. A ideia é representar a vida destas como uma história só, através de suas narrações e com isso mostrar os desafios vividos por estas em períodos nos quais sexualidade feminina era tratada como um tabu, além de o marido servir basicamente como seu proprietário.
A narração verbaliza praticamente tudo que vemos em cena, algo aceitável na mídia documental. A sorte é que a diretora Antonella Sudasassi consegue transformar até o mais mundano dos acontecimentos em algo visualmente interessante. Filmado em 2.35:1, mesmo sendo quase inteiro situado em uma casa, Memórias de um Corpo Ardente consegue preencher o quadro horizontalmente com elementos de cenário relevantes, posicionamento inteligente da atriz principal e composições as quais aproveitam dimensões da ambientação.
A abordagem contemplativa permite progressão visível através de mudanças da dinâmica da personagem central com seu ambiente, permitindo que as explosões de frustração vindas de traumas e sentimentos internalizados sejam notáveis e catárticas. As atuações, todas com personagens creditados com substantivos (“A Mulher”, “O pai”) são extremamente naturais, seja nos momentos de leveza ou nos de maior peso.
O trabalho de edição também alia-se de forma inteligente com a direção, pois há uma série de transições inteligentes as quais aproveitam o cenário principal, sempre permitindo a movimentação fluída dos atores e da câmera pelos tempos narrativos e situações.
Memórias de um Corpo Ardente trata temas relevantes com a seriedade necessária e, mesmo contando com a narração constante, não parece forçar expressões de consternação de seu público. A direção, mesmo adotando um formato o qual considero duvidoso, preocupa-se muito mais com o ato de contar uma boa história do que explorar emoções de seu público. Trata-se, portanto, de um filme simples o qual, ao acertar no mais importante, consegue atrair até mesmo os menos interessados por seu formato.
Sinopse de Memórias de um Corpo Ardente:
Duas sexagenárias, Ana e Patrícia, e uma septuagenária, Mayela, cresceram numa época em que a sexualidade não era discutida ou expressa livremente por ser considerada um tabu. Aprenderam a ser mulheres a partir das normas silenciosas e das exigências ocultas da sua sociedade. Agora eles têm a coragem de compartilhar abertamente suas experiências. Suas histórias são contadas de forma poética: enquanto narram suas vidas em off, outra mulher entra em cena encarnando suas memórias, segredos e desejos.
O filme conta com Antonella Sudasassi na direção e com o elenco formado por Liliana Biamonte, Sol Carballo e Paulina Bernini Viquez e foi selecionado como a entrada da Costa Rica para o Oscar 2024 e vencedor do Prêmio do Público na mostra Panorama do Festival de Berlim, também este ano.
Sobre o Festival Filmes Incríveis:
A partir de 1º de Agosto o REAG Belas Artes (SP) será o centro de uma volta ao mundo em produções cinematográficas de 20 países que formam a seleção do Festival Filmes Incríveis do Belas Artes Grupo.
Todos são inéditos no circuito brasileiro, e apresentam as novas obras de cineastas renomados, como o brasileiro Karim Aïnouz e o cambojano Rithy Pan, além de um longa do polonês Krzysztof Kieslowski.
O festival acontece até 14 de agosto e é patrocinado pelo Desenvolve São Paulo, Secretaria do Estado de São Paulo e o Ministério da Cultura.
Mesmo trabalhando na área de educação, estuda e escreve sobre cinema desde os treze anos. Mesmo vendo muita coisa fora de Hollywood, não é hater de blockbusters (nunca deixa de ver um Velozes e Furiosos quando lança). Ama também ler e jogar videogame. Apenas evita comédias românticas e livros de auto ajuda.