Estreia de Dev Patel na direção, Fúria Primitiva não abre mão de contar uma bela história.
A vida para artistas sérios não está fácil. Enquanto aqueles dispostos a apenas seguir as regras do jogo seguem com sua estabilidade, os ambiciosos passam por diversos problemas para colocar suas visões em tela. Se Martin Scorsese precisou contar com o apoio das empresas de streaming e Francis Ford Coppola tirou dinheiro do bolso pra seu novo filme, Dev Patel, um ator de relativo renome, já indicado ao Oscar, passou por uma situação difícil para obter distribuição para seu filme de estreia como diretor.
Fúria Primitiva, o tal filme, foi oferecido para a Netflix, a qual tem fama de aceitar tudo pra aumentar o catálogo. O único problema é que, por razões aparentemente políticas, o estúdio recusou a produção. A salvação veio com Jordan Peele, o renomado comediante e diretor de Corra, Nós e Não, Não Olhe, o qual viu potencial e adquiriu os direitos de distribuição. Longa de ação de baixo orçamento, Fúria Primitiva ganhou visibilidade com esta história e com o árduo trabalho de divulgação do astro e diretor, tendo saído vitorioso com o sucesso deste de crítica e bilheteria. O quão merecido isso foi, veremos agora.
Situado na Índia contemporânea, o longa foca num lutador clandestino, o qual ganha dinheiro perdendo as lutas e ainda assim vive num lugar desconfortável com outras tantas pessoas dividindo o dormitório. Este consegue trabalho para uma poderosa empresa envolvida com prostituição. Tendo obtido o emprego com o objetivo de se vingar dos poderosos que destruíram seu lar e mataram sua mãe quando este era criança, o homem apoia-se à mitologia de sua cultura para alcançar seus objetivos.
Erroneamente divulgado como o “John Wick indiano”, o filme brinca com o renome de seu contemporâneo em cena na qual o protagonista busca por armamentos enquanto busca distanciar-se deste em sua história. Há em comum a iluminação neon e o apego à fisicalidade do ator principal, porém para por aí.
O estilo de direção de Patel envolve câmera dinâmica, porém precisa, remetendo menos à trepidação dos anos 2000 e mais à precisão de Gordon Chan em seu Thunderbolt. Sempre há espaço para que a câmera situe-se em lugares interessantes, tais como uma cena envolvendo luta em escadaria. A diversidade de cenários para que as lutas e perseguições aconteçam possibilitam movimentos criativos e mistos de humor e tensão (tais como a luta no bordel, e a luta envolvendo algemas e um nariz, com a câmera acompanhando especialmente do chão, é excepcional).
O entendimento do Patel cineasta sobre progressão e sobre como a história é o eixo da ação, e não apenas uma fronteira a ser atravessada para a “parte boa” (algo que Hollywood, em sua busca constante pelos climaxes, esqueceu faz tempo) é de alguém que entendeu as lições dos cineastas asiáticos, tais como o próprio Chan.
Um bom roteiro de ação comporta tanto trama, personagens e as chamadas “set pieces” (os eventos em que a ação se consolida), e o filme de Patel é primoroso neste sentido. Ao fazer do lutador um homem, embora injustiçado, inteligente e extremamente ativo dentro da própria trama, conduzindo cada passo até alcançar seu objetivo e, ao mesmo tempo, vulnerável e com suas próprias fraquezas, o longa gera empolgação por gerar no público tanto empatia quanto interesse pela jornada deste.
Quando o herói já tem todas as ferramentas e torna-se uma questão de tempo até que este vença o vilão, não há tensão, não há expectativa, nem tampouco heroísmo. A referência a Thunderbolt torna-se válida, pois Dev Patel com certeza estudou o cinema de Jackie Chan (tanto deste enquanto astro e produtor quanto diretor). A fórmula do herói simpático ao público o qual começa na desvantagem e conquista o direito da vitória é seguida firmemente.
Mas se o público estiver procurando por comentários sociologicamente relevantes, Fúria Primitiva oferece inúmeros, e todos integrados à mitologia hindu e extremamente bem amarrados ao enredo. Como o bom estudioso do cinema de artes marciais, Patel aprendeu a lição do brilhante Lau Kar-Leung em seu A Câmara 36 de Shaolin e dedica boa porção do longa ao processo de absorção de conhecimento e treinamento do protagonista, e a dinâmica deste com certo grupo de pessoas segregadas apenas enriquece o universo da produção.
Surpreendendo também ao exibir uma edição frenética e ao mesmo tempo orgânica, Fúria Primitiva é uma grandíssima estreia para Dev Patel na direção a qual merece toda a repercussão positiva recebida. Perda da Netflix, vitória para todos nós.
Fúria Primitiva – Trailer
Mesmo trabalhando na área de educação, estuda e escreve sobre cinema desde os treze anos. Mesmo vendo muita coisa fora de Hollywood, não é hater de blockbusters (nunca deixa de ver um Velozes e Furiosos quando lança). Ama também ler e jogar videogame. Apenas evita comédias românticas e livros de auto ajuda.