Ainda Temos o Amanhã evoca com leveza a era mais marcante do cinema italiano.
Sendo o italiano um dos cinemas mais versáteis e duradouros, ainda assim este teve sua época mais marcante. Tendo sido responsável por nortear os rumos da produção cinematográfica, o neorrealismo trouxe temáticas pesadas relacionadas à era do pós-guerra, tendo alcançado um ponto alto em popularidade e relevância em uso de linguagem e sofisticação. Sem Vittorio de Sica e Roberto Rossellini não haveria Frederico Fellini, e isso já diz muita coisa.
Se a pobreza e o massacre da classe trabalhadora ainda são temas relevantes para 2024, nada mais justo que experimentar com as fórmulas aperfeiçoadas pelos mestres do passado. Assim chegamos a Ainda Temos o Amanhã, de Paola Cortellesi, o qual é bem sucedido ao invocar temáticas e situações daquele período com alguns toques modernos.
Na história, situada em 1946, a protagonista, Delia (a própria Paola Cortellesi), é uma mãe de uma família financeiramente decadente que busca lidar com a agressividade do marido (Valerio Mastrandea) e com as dificuldades de uma Itália arrasada pela guerra. Enquanto sua família vê no casamento da filha mais velha (Romana Vergano) uma saída para a prosperidade, Delia busca por sua autonomia com otimismo sem perder o senso de realidade.
Primeiramente, Cortellesi demonstra suas credenciais como cineasta rapidamente. Os primeiros minutos de Ainda Temos o Amanhã são filmados em 4:3 (o formato clássico antigo, com as barras à direita e esquerda), meticulosamente preenchendo o quadro verticalmente. O destaque fica para a tomada na qual somos apresentados aos três filhos da família, os quais são obrigados a dormir juntos desconfortavelmente e ajeitando-se à estreiteza tanto do quadro quanto da câmera.
Isso nos momentos em que a protagonista vê-se confinada a seu ambiente doméstico. Assim que esta sai de casa o quadro estende-se para 1:85.1 e, com isso, o espaço horizontal do quadro torna-se mais amplo, algo prontamente aproveitado pela cineasta. As composições desta são assertivamente preenchidas tanto de forma horizontal quanto em profundidade, tendo elementos interessantes em diferentes dimensões os quais trazem amplitude para o universo retratado. Embora o simbolismo de expansão de horizontes seja óbvio, o que importa é que é efetivo e muito bem aproveitado pela diretora.
Já o roteiro é perfeitamente funcional. A maior proeza é justamente no retrato da protagonista (potencializado pela ótima atuação de Cortellesi) que mostra-se um completo oposto da musa de Fellini, Giulietta Masina (uma precursora das protagonistas de novelas mexicanas): demonstrando uma gama complexa de emoções e internalizando dores sem deixar de demonstrar vulnerabilidade, Delia é uma mulher inteligente que abraça a perseverança como forma de sobrevivência.
Mesmo não sendo os outros personagens dos mais memoráveis, a força da protagonista é mais que o suficiente para a narrativa manter sua força. A sincronia com esta é refletida no tom, e assim os momentos de tristeza retratados de formas inesperadas, evitando escorar-se na tragédia, podem render reações diversas.
No final das contas, Ainda Temos o Amanhã é tão perseverante e otimista quanto Delia, e sua ótima direção e condução rendem duas horas bastante agradáveis.
Sinopse:
Em uma Roma pós-guerra dos anos 40, dividida entre o otimismo da libertação e as misérias, vive Delia, uma mulher dedicada, esposa de Ivano e mãe de três filhos. Esses são os papéis que a definem e ela está satisfeita com isso. Enquanto seu marido Ivano age como o chefe autoritário da família, Delia encontra consolo em sua amiga Marisa.
A família se prepara para o noivado da filha mais velha, Marcella, que vê no casamento uma saída para uma vida melhor. No entanto, a chegada de uma carta misteriosa dá a Delia a coragem para questionar seu destino e de sua família e, talvez, encontrar sua própria liberdade. Entre segredos e reviravoltas, Ainda Temos o Amanhã explora o poder do amor e da escolha em tempos difíceis.
Ainda Temos o Amanhã – Trailer
Mesmo trabalhando na área de educação, estuda e escreve sobre cinema desde os treze anos. Mesmo vendo muita coisa fora de Hollywood, não é hater de blockbusters (nunca deixa de ver um Velozes e Furiosos quando lança). Ama também ler e jogar videogame. Apenas evita comédias românticas e livros de auto ajuda.