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A Substância | Ficção científica do grotesco para a era do ozempic

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Longa de diretora francesa, A Substância, usa das melhores referências e abre novas portas para Demi Moore.


Em 2014, Birdman consolidou-se como um fenômeno de críticas e premiações, tendo garantido seu Oscar no ano seguinte em quase todas as categorias principais. Uma falta evidente foi na de Melhor Ator, pois não só a atuação principal de Michael Keaton mostra-se crucial para o sucesso do filme de Alejandro G. Iñarritu como a trajetória da carreira deste, de ícone ao interpretar o Batman a coadjuvante glorificado durante anos fora uma das bases de sustentação daquele roteiro. 

As frustrações e a ansiedade de um artista lidando com o envelhecimento e com o desinteresse de grandes estúdios representam um dilema relevante e o qual fora o tormento de um grande astro de outrora que, felizmente, parece estar de volta à ativa. Este teor semi biográfico também é trazido por A Substância. 

Ícone dos anos 90, Demi Moore foi uma das queridas de longas que pouco exigiam desta enquanto atriz dramática, exaltando, em contrapartida, a beleza, na maior parte do tempo. Houve uma ou outra tentativa desta de sair do molde, com destaque ao ignorado G.I. Jane (o qual foi relembrado para servir como referência para a piada a qual levou Will Smith a agredir Chris Rock no Oscar 2022), mas a mocinha jovial e bela foi o estereótipo vinculado a Moore durante seus tempos áureos. 

Junto do sucesso neste tipo de produção veio o tabloide, e ainda que seu casamento com Bruce Willis tenha resultado em amabilidade de ambas as partes, o convívio turbulento da atriz com Ashton Kutcher, um eterno adolescente tanto dentro quanto fora das telas, fez com que Moore fosse subordinada ao papel de relíquia de uma era a qual nunca voltará. Sob a direção da francesa Coralie Fargeat, A Substância vem como uma resposta tanto à mentalidade do esquecimento pela qual Demi Moore foi vitimada quanto aos padrões absurdos de estética da era do Ozempic. 

Demi Morre em A Substância

Na trama, Elizabeth Sparkle (Moore) é uma artista renomada que passa a ser vista como ultrapassada por executivos de alto escalão. Quando descobre que o produtor de seu programa televisivo, Harvey (Dennis Quaid), pretende substituí-la por uma garota mais jovem e inexperiente, esta reflete sobre a própria trajetória. Após um acidente automobilístico (no qual sai sem nenhum arranhão, uma referência curiosa a Corpo Fechado e, por consequência, Bruce Willis), Sparkle descobre um experimento o qual se compromete a trazer à tona uma versão mais jovem e “aprimorada” desta, aceitando e, com isso, dando origem a Sue (Margaret Qualley). 

Ambas as contrapartes precisam seguir certos procedimentos do experimento para poderem viver em harmonia, porém como fã de David Cronenberg que é, Fargeat usa a necessidade de cumprimento de regras justamente para servir como brechas para conflito entre as duas mulheres (as quais, mais de uma vez, são definidas pelos cientistas responsáveis como “uma só”). 

Em termos de roteiro, A Substância trata-se de um trabalho simples, porém não simplista. O foco é em apresentar os poucos personagens, seus objetivos e os empecilhos para que estes sejam alcançados. Para cumprir o segmento de ficção científica, há as regras, as quais são expostas rapidamente e com clareza, o bastante para que ninguém fique perdido quando haja quebras destas conforme a narrativa segue. A progressão de situações e a divergência entre os comportamentos de Elizabeth e Sue é outro ponto forte do roteiro, com a primeira manifestando uma clássica personagem de um certo conto germânico o qual vai ganhar adaptação da Disney ano que vem. 

A maior virtude aqui é trazer situações interessantes. Estas não faltam, com Fargeat na direção usando o frame de 2.39:1, horizontal e extenso, para composições grandiosas, ambientes prolongados (os corredores e o banheiro de Elizabeth são os maiores exemplos) e muitos planos de detalhe e close ups apropriadamente espalhafatosos. Os movimentos de câmera chamativos, tais como o travelling o qual percorre o rosto de Sue após sua concepção e, posteriormente, seu corpo. A escuridão e as sombras também são utilizadas pela diretora de modo a estimular a imaginação, havendo imensas recompensas graças ao trabalho espetacular de maquiagem. 

Margaret Qualley como Sue

A Substância trata-se de um filme de direção, edição e atuações (Moore, em especial, entrega o carisma, a decepção, a ansiedade e a autodestruição de Elizabeth com tudo que há direito). Com os três elementos andando juntos, a progressão se faz de maneira impecável, com um tom mais sóbrio na porção inicial e tanto o humor quanto o terror se complementando gradualmente ao longo da narrativa, culminando num desfecho o qual referencia A Mosca, O Enigma de Outro Mundo, O Corcunda de Notre Dame, King Kong, entre outros clássicos. 

Se os dois primeiros trechos de A Substância são extremamente eficientes, é o terceiro ato que vai testar a afeição do público à narrativa. A mistura de sadismo e empatia da diretora brilha ao debater a relevância da mulher condicionada a seu papel como estímulo de libido sem necessidade de verbalizações. 

E de fato não há esta necessidade, pois em 2024 o que não falta é uma multidão de pessoas as quais alegam ser desconstruídas e agregadoras mas não se furtam de divulgar “Botox preventivo”, “controlador alimentar”, “lipo lad” e outras ferramentas que servem apenas para esconder envelhecimento natural, com um potencial destrutivo imenso.

A verdade é que o discurso muda, porém as práticas permanecem mais nocivas, idadistas e segregacionistas do que nunca. Sempre é interessante se declarar uma pessoa acolhedora, mas na prática cada um tenta apenas salvar a própria pele para agradar um mundo predatório e sedento por prazeres tão rápidos quanto os disparos de mensagens de Whatsapp. Fargeat, afortunadamente, entendeu: esconder seu monstro interior só vai alimentá-lo até o estrago ser irreparável.
    

Confira o trailer de A Substância:


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