Zootopia e a filosofia

Compartilhe:

Vencedor do Oscar de melhor animação em 2017, Zootopia vai além do entretenimento esperado de um filme infantil, ele nos faz refletir e traz nas entrelinhas a representação de muitos estudos filosóficos e sociais.  

Zootopia, como o nome já sugere, é uma cidade utópica, onde diversos animais tanto “presas” quanto “predadores” convivem em uma aparente harmonia, cada um com suas devidas tarefas já predeterminadas desde o nascimento. Entre eles, está Judy, uma coelha nascida no interior, filha de agricultores de cenouras. Sua função, pelo padrão proposto, era seguir os passos dos pais e continuar na plantação a vida toda, porém seu maior sonho mesmo é se tornar policial.

Em busca da realização desse sonho, Judy vai do interior para Zootopia. Lá, ela entra na academia de polícia e, por ser aparentemente pequena e frágil, logo se vê diante de muitos obstáculos para conquistar seu sonho. Como o fato de ser colocada para atuar como guarda de trânsito. Mesmo frustrada e insatisfeita, ela executa suas tarefas, ansiando demonstrar sua real capacidade. Atuando como guarda, ela conhece Nick, uma raposa sagaz, que vive de pequenas fraudes.

No desenrolar do filme, ela descobre que há um mistério rondando a cidade: vários predadores sumiram. Ansiosa por desvendar esse mistério, salvar os animais em perigo e provar seu valor, Judy se junta a Nick e parte em busca da solução. Porém, eles percebem que a ameaça não é apenas para a família do desaparecido, mas para própria estrutura social que sustenta a cidade.

E é aí que entra a questão sobre a qual quero falar. A animação propôs uma perspectiva interessante para quem conhece um pouco dos estudos sociais, talvez mais especificamente aos que conhecem o pensamento contratualista de Thomas Hobbes e Rousseau. A teoria do Contrato Social surgiu como um estudo do estado de natureza humana, que seria o comportamento do homem quando não existem regras estabelecidas. Não havendo regras, cada pessoa executa sua ação de acordo com sua vontade.

O estudo propunha explicar a razão pela qual os indivíduos abriram mão de suas liberdades individuais para o bem-estar da sociedade na qual eles viviam e encontrar uma forma de preservar a liberdade do homem ao mesmo tempo em que se busca o desenvolvimento coletivo. O filme faz uma certa comparação entre o antes e o depois da aplicação desse famoso contrato social apresentado pelos filósofos.

Zootopia se assemelha à essa ideia ao tentar superar o estado de natureza de cada animal existente. Esse estado é o que impõe certa rivalidade entre eles, através da lei da sobrevivência, onde o mais forte provavelmente irá vencer. Para dominar esse estado e a paz ser alcançada, regras são estabelecidas e, nesse caso, os animais são divididos por funções, formando uma sociedade utilitarista como Hobbes descreve: “(…) o objetivo da Filosofia não seria atingir uma verdade, mas criar condições para que se estabeleça a paz entre os homens, ou seja, para a superação do estado de natureza. Uma concepção utilitarista, visto que a ação humana seria um movimento que busca o que agrada e se afasta do que desagrada“.

Então, dessa forma, é estruturado uma espécie de contrato social em Zootopia. Tudo corria aparentemente bem. Porém, a harmonia da cidade é ameaçada quando acontece algo que não está no contrato como o desaparecimento dos predadores. E, assim, com a quebra desse acordo surgem conflitos que fazem com que haja um retrocesso, ainda que por pouco tempo, ao estado de natureza, ao estado original do animal, pois, segundo Hobbes “(…) a insegurança em relação à possibilidade de uma atitude hostil leva ao ataque, seja para vencer o outro ou como meio para se defender de uma possível agressão. Está declarada a guerra de todos contra todos”.

Então, com o caos tomando conta da cidade, Judy se vê na posição que tanto almejava e põe de lado “o direito positivo’’, onde seguia as regras e função impostas (de ser apenas guarda de trânsito), e passa a usar seu “direito natural’’ investigando o mistério a fim de trazer a paz de volta à Zootopia e ser reconhecida pela sua capacidade de ser uma boa policial. Para o Hobbes, “(…) se liberdade é definida como ausência de impedimentos externos para a ação do indivíduo, o contrato e a passagem para o estado de sociedade implicam em uma privação da liberdade, justificada pela necessidade de garantir a sobrevivência de todos. Não há mais direito natural, mas direito positivo, ou seja, criado pelos homens em uma situação específica”.

Ainda nas entrelinhas de Zootopia, há uma certa segregação animal de acordo com cada espécie e tamanho, impondo, assim, uma hierarquia política. Tanto que o leão é o prefeito, os agentes da lei são apenas os animais de grande porte e a vice-prefeita, uma ovelha, usa um programa social para que animais como Judy possam vir a se tornar policiais, fato que traz desdenho e desmerecimento para a tal por conta de alguns animais. É muito interessante como a Disney teve todo o cuidado de retratar um tema como esse da maneira mais divertida e delicada possível.

Há, ainda, uma crítica à sociedade moderna que divide, impõe essa separação entre as classes, estabelece uma competição entre os indivíduos e os torna corruptíveis. Trazendo à tona a famosa questão filosófica: a do próprio Hobbes de que “o homem é o lobo do homem”, ou seja, o homem já tem o mal dentro de si, o instinto de sobrevivência que faz com sua verdadeira natureza seja mostrada diante de um conflito ou a de Rousseau que diz que o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe (“A natureza fez o homem feliz e bom, mas a sociedade deprava-o e torna-o miserável“). Há, claro, outras opções além dessa dicotomia. Qual caberia aqui?

A animação conta com um enredo que pareceria comum, fofo e apenas divertido. Contudo, a atuação da personagem principal diante da tentativa de solução da problemática, nos mostra como o preconceito perpetua no indivíduo, como um pensamento imposto fica enraizado, ainda que imperceptível para o mesmo. A própria Judy tenta usar as diferenças físicas e a genética como justificativa para tal segregação, gerando um conflito com seu parceiro Nick, um predador. Há uma profunda discussão embutida nessas cenas, com uma visão mais crítica a gente consegue enxergar além do que apenas a mágoa no olhar da raposa. 

O desenrolar do filme a partir daí nos faz pensar o quanto Zootopia se assemelha ao mundo real, atual e bipolarizado. Onde o preconceito e o medo levam as pessoas a tomarem medidas absurdas. A diferença é que em Zootopia há realmente diversas raças e espécies diferentes, nós somos apenas uma, não é verdade?

A primeira vez que assisti ao longa, eu mal podia acreditar no que estava vendo. A estrutura social, as questões filosóficas, as críticas ao mundo atual. Não é a toa que ganhou o Oscar de melhor animação (competindo, inclusive, com Moana que é maravilhoso também!). Fiquei muito feliz em ver assuntos como esses sendo tratados, ainda que de forma bem sutil, por se tratar de um filme voltado ao público infantil.

Zootopia se tornou um filme que vai além do “é só mais uma animação da Disney, com musiquinhas, heroínas sendo salvas e final feliz”. Ele traz, além do estudo social, a reflexão acerca da nossa própria realidade, da nossa sociedade, do quanto perpetuamos um preconceito, o quanto deixamos de lado nosso instinto para seguirmos o padrão, o que supostamente “deve” ser feito.

Judy desvendou o mistério, realizou seu sonho, se tornou policial, mas o que a fez realmente crescer foi o fato de que aprendeu a enxergar sua comunidade de outra forma. Torcemos para outros filmes como esse sejam lançados para que as crianças cresçam sem perpetuar esse pensamento tão agregado à nossa humanidade, que cresçam sabendo que somos diferentes sim e que não há problema algum nisso.


Compartilhe: