Novo filme de animação do mestre japonês traz todo seu arsenal de qualidades em uma roupagem estranhamente distante.
O cinema de Hayao Miyazaki, ao menos na opinião do cidadão que vos fala, consiste em atrair pelas premissas mágicas e coloridas apenas para deixar a implacável sensação de “Minha vida nunca mais será a mesma” ao subir dos créditos. Este conseguiu tal feito tanto em obras violentas (Princesa Mononoke) quanto infantis (Ponyo), sendo sua obra prima, A Viagem de Chihiro, a culminação de décadas de aprimoramento técnico e narrativo.
Tão comum na carreira de Miyazaki quanto mundos imaginativos é a ameaça de aposentadoria. Após o lançamento de Vidas ao Vento, em 2013, o diretor passou dez anos sem lançar outra animação, sendo O Menino e a Garça seu retorno. Caso este seja seu filme final, é preciso mensurar se faz jus à sua bela carreira.
Na história, o menino-título chamado Mahito tem sua mãe morta num incêndio e, um tempo depois, vai com seu pai morar com Natsuko, sua tia e, agora, madrasta. Enquanto tenta viver em um novo cenário, o garoto é visitado e provocado por uma garça, a qual parece indicar que sua mãe ainda está viva. Quando sua madrasta desaparece, Mahito parte em uma jornada para resgatá-la e, no processo, descobre um mundo místico paralelo e mais sobre si mesmo.
Sendo declaradamente inspirado na infância de Miyazaki, O Menino e a Garça traz consigo tudo que há de se esperar de um longa deste com o Estúdio Ghibli, em especial o equilíbrio entre ambientes vastos e ricamente animados com as complexas expressões e linguagem corporal de seus personagens (o que faz com que sempre o aspecto 1.85:1 seja escolhido para estas animações, valorizando ambientes altos e a verticalidade dos personagens).
Trata-se de um arco tradicional, já visitado em Chihiro, de autodescoberta e amadurecimento. O famoso “coming of age”. E sendo Miyazaki um dos autores mais inteligentes de seu segmento, há pouco interesse em romances repentinos, vilões caricatos ou dramas artificiais.
A jornada de Mahito traz toda a sorte de humores (sendo a Garça do título a maior expoente deste elemento) e coadjuvantes curiosos (com as sete idosas sendo uma clara referência a uma certa história envolvendo uma princesa e sua madrasta).
A busca por conforto e por adequação num ambiente diferente, além da desconstrução do conceito de “Madrasta” (claro, dentro da perspectiva japonesa da dinâmica parental e familiar) é retratada com parte da sensibilidade habitual de Miyazaki. Digo parte, pois o impacto emocional de suas obras vinha geralmente pela contemplação e apreciação do desenrolar após o público estar minimamente ambientado.
Em O Menino e a Garça, o conceito de ambientação ruma à psicodelia, pois há informações, conceitos e apresentações de personagens até os últimos dez minutos. Talvez por tratar-se de uma história extremamente íntima de seu autor, há sempre o risco da condescendência, de acreditar que o investimento de terceiros será equivalente ao do contador.
Se Kenneth Branagh com seu Belfast é o condescendente mor ao passo que John Boorman com Esperança e Glória é o cineasta a melhor trabalhar o conceito da ficcionalização da própria juventude (Os Fabelmans de Spielberg merece ser assistido também), Miyazaki com O Menino e a Garça parece procurar seu lugar no meio-termo, nunca alcançando, no processo, a catarse emocional a qual é tão cara às grandes animações japonesas.
Irregular em seu dilema entre ambição e execução, a nova produção do Estúdio Ghibli jamais mostra-se entediante. Há suficiente encantamento e aventura para agradar crianças e adultos. Se não é o canto do cisne digno de uma trajetória brilhante, é definitivamente um bom entretenimento.
O Menino e a Garça – Teaser
Mesmo trabalhando na área de educação, estuda e escreve sobre cinema desde os treze anos. Mesmo vendo muita coisa fora de Hollywood, não é hater de blockbusters (nunca deixa de ver um Velozes e Furiosos quando lança). Ama também ler e jogar videogame. Apenas evita comédias românticas e livros de auto ajuda.